
De certo modo impulsionado por
DK, escrevi, quase de um só jorro, alguns comentários ao artigo de Maria Filomena Mónica (MFM) publicado no suplemento "
Mil Folhas" do "
Público" de 9 de Abril, "
A Covardia dos Intelectuais". Cá vai:
1. Em primeiro lugar, MFM parece defender um relativismo cultural (RC) só fora das Universidades (quererá englobar os Politécnicos? Não se sabe...). Assim, se o RC, condene-se ou não, resulta de uma atitude que decorre da (co)existência de diferentes culturas, das trocas que operam entre si e da evolução que ocorre numas e noutras, só se deverá considerar os intercâmbios e os resultados deles que forem relevantes para o saber universitário. E quem decide o(s) critério(s) dessa relevância? Para já MFM... não... porventura estarei a ser injusto. Porque tais intercâmbios também ocorrem ao “
mais alto nível cultural”. E esse MFM não quer escamotear. Ela decidirá, então,
quem preenche esse requisito ou não. Furedi parece faze-lo: logo deve ser seleccionado.
2. Em segundo lugar, MFM, ao admitir o relativismo cultural fora das Universidades mas não, ou não tanto, dentro elas, assume, mais ou menos explicitamente que os discursos (e as práticas) de ligação Universidade/sociedade podem estar desajustados. Por conseguinte, as instituições universitárias não devem formar profissionais para a sociedade civil e, neste sentido, aquelas instituições não devem conhecer a sociedade (com ou sem rap e com ou sem telenovelas) para a qual os seus diplomados se devem direccionar. Deverão, sim, insistir em “
Homero, Mozart ou Eça” e, após formados, incuti-los à força nos jovens imigrantes e pobres em geral (em processo de escolarização ou não) que, explorados pelas elites económicas e sociais (
e intelectuais?) se esforçam por sobreviver.
Passam fome? Dêem-lhes “Homero, Mozart ou Eça” que o alimento da alma alimentará, seguramente o estômago. A Universidade deve impor, autocraticamente um certo etncentrismo cultural à sociedade que a rodeia, para MFM. E nem pensar no oposto. Porque os verdadeiros iluminados são aqueles que calcorreiam os gabinetes e corredores obscuros (mas únicos detentores do "mails alto nível cultural") da instituição universitária.
E, MFM, tem andado pela “
sociedade”? Pelos hipermercados, por exemplo? Da última vez que lá fui vi, a par de revistas de telenovelas e CD's de rap, alguns livros de Homero, muitos CD's de Mozart (alguns até a preço acessível como brinde de revistas que trazem resumos de telenovelas) e livros de Eça.
E o que andarão a fazer os sociólogos (da sua área,
remember?) e outros investigadores da área das Ciências Sociais e Humanas que, justamente nas Universidades, estudam e investigam os fenómenos sociais das telenovelas e da música rap? Perderão, a seu ver, tempo a estudar estas “infra-culturas”? Seguramente já que não há aqui “
Homero, Mozart ou Eça”. Será que podemos ressuscita-los?
3. MFM padece daquilo que designei na última “
Revista do Ensino Superior” do “
saber geracional válido”. Saudosista e enfermada por uma boa dose de nostalgia da “escola do meu tempo”, apelida dos saberes que adquiriu na sua geração como “
válidos e fundamentais” considerando os ulteriores (de gerações seguintes à sua) de inúteis ou desadequados. MFM parece advogar que a Universidade se submeteu a um papel de transmitir saberes não úteis, valendo-se de Furedi e –
atabalhoada e convenientemente, de Lyotard para se fazer valer das suas posições. Lyotard é, precisamente, um dos autores que defende a integração de novos saberes nas estruturas de produção, sistematização e veiculação dos mesmos: as universidades. Mas MFM só leu o excerto que lhe foi mais conveniente.
O “
saber puro” (o que é?), o “
deleite de descobrir algo de novo” (com “
Homero, Mozart ou Eça”?), “o
prazer da experimentação, de ter cabimento nos estabelecimentos de ensino deixou de ter cabimento dos estabelecimentos de ensino”, verbera MFM. O principio do prazer deve sobrepor-se à utilidade e pertinência do conhecimento? Os “
choques tecnológicos” (sic) ou a tecnologia em geral são despiciendos? Mesmo que criem empregos ou lhe permitam usar o seu visa ou aceder à(s) sua(s) (generosas?) contas bancárias por via do seu pc no conforto do seu lar? Ou MFM tem as obras completas de padrão em cima da sua secretária do pc? E as “
competências linguísticas” que agora minimiza? Não era MFM que se queixava de que os estudantes chegavam às Universidades com claras dificuldades de interpretação e dando erros ortográficos e sintácticos de palmatória? Se bem me lembro colocava o labéu desta responsabilidade nas malfadadas “
Ciências da Educação”... para MFM não se deviam mudar os tempos mas as suas vontades parecem faze-lo...
4. Muito certa está MFM na tendência de “
infantilizar” alunos, em parte efeito da massificação do acesso de alunos no ensino superior (agora já fala de ensino superior e não de “
Universidade”.
Será que...?). Convenientemente (?) esquecendo estudos (sociológicos, diga-se de passagem: andará MFM só a reler “
Homero, Mozart ou Eça” e distraiu-se?) ulteriores ao que cita, omite que se os alunos são “
infantilizados” são-no por alguém, de que se os ”
«saberes» trazidos [pelos alunos]
para as salas de aula são hostis à difusão do conhecimento” é porque alguém o permite. A este insulto, mais ou menos explicito a todos os estudantes, ocorre a tendência recorrente em MFM: dos males da Universidade ou do Ensino Superior, sobre os respectivos professores, pobres alimárias esforçadas e subservientes do “
saber privilegiado” de “
Homero, Mozart ou Eça”, não podem e não devem impender quaisquer responsabilidades. Então a quem devemos situa-las? Às “
Ciências da Educação”? Aos grandes decisores e às suas grandes instâncias? MFM costuma localizar, amiúde o locus da “
culpa”. Desta vez não ou não tanto...
5. Felizmente, cita MFM de Furedi, o afrouxamento da concepção elitista da Universidade (e as práticas consentâneas) parece “
corresponder a uma ideia surgida no interior da própria elite”. Mas não da elite que compõe a classe docente universitária, pensará MFM. Ó MFM? Não lhe ocorreu que, tendo-se apercebido a elite que a Universidade ao ser massificado e lhe ser difícil ou impossível continuar a cumprir um papel social afunilador, prefere a elite desvalorizar a função elitista da Universidade de modo a prosseguir uma “
political agenda” da própria elite? Isto é, se eles não podem continuar a criar “
mais de nós”, que se nivelem por baixo para continuarmos a sermos “
só nós”?
A este nível é altamente conveniente que os ciganos continuem a aprender, informalmente, o "
atirar facas", os angolanos a "
tocar tambores" e os camponêses a "
arte da desfolhada" já que esta
etnicização das especificidades culturais conduz a uma hierarquização de culturas (e das relações sociais) onde o "
mais alto nível cultural" (corporizado em MFM por "
Homero, Mozart ou Eça") assegurará a defesa do "
verdadeiro saber". E aqui MFM vai dando o seu generoso contributo por via de uma estratégia de vitimização pelos males do relativismo (ou será
ralativismo?) cultural e oprimida defensora da verdadeira cultura: aquela que adquiriu em Oxford.
6. E diz MFM: “
As actuais políticas educativas constituem um cruzamento entre o infantilismo e a psicoterapia: menorizam os estudantes, porque os nivelam pelo menor denominador comum, e psicoterapizam a cultura, porque não querem beliscar a "auto-estima" dos adolescentes. O resultado é a ignorância dos jovens licenciados, muitos deles tendo frequentado, com enormes custos para as famílias, a universidade. Basta ver o concurso da RTP1 Um Contra Todos para nos apercebermos até que ponto a falta de cultura geral aflige os participantes.”
Ó MFM? Eu pasmo quando desvaloriza as “
telenovelas” e as “
canções rap” e agora se serve de um produto
tele(lixo)visivo para servir como parâmetro avaliador da “
falta de cultura geral”! Credo! Este excerto é seu ou redigiu o artigo em co-autoria com mais alguém? Se é o próprio Furedi (que tanto cita) que “
pressupõe serem as audiências elevadas incompatíveis com a excelência“. Em que ficamos? Se “
as massas populares [telespectadores televisivos]
são intrinsecamente estúpidas” (suas palavras citando Furedi) como pode um concurso televisivo ser bom para avaliar a “
cultura geral”? Não estou a reconhece-la...
7. E de novo regressamos às teses conspiracionistas da “
ortodoxia pedagógica” nos males da Educação, desta vez por parte dos “
poderosos, para que os meninos pobres não compitam, no mercado de trabalho, com a geração nascida em berço de oiro”. Desconfio que está a dizer, parcial novidade, que desta vez, os maléficos teóricos das “
Ciências da Educação” são afinal, vítimas de uma “
hidden political agenda” dos poderosos, isto é, testas de ferro incônscios do facto de que estarão a servir propósitos elitistas de hierarquização social. Bom, estamos (sim, eu sou das “
Ciências da Educação”) a “
melhorar”: passamos de ideologizadores malvados a manipuladas marionetas de propósitos obscurantistas.
8. Dou-lhe alguma razão no “
eudeusamento” da internet (embora escamoteie grandes vantagens na divulgação do conhecimento: são as próprias instituições de ensino superior que criaram a internet e cada vez mais a usam em esquemas de investigação e produção de conhecimento em rede que julgo não ser contra...) mas ao afirmar “
a profusão recente dos blogues poder dar a ilusão de que existe uma maior democratização da opinião pública. Nada é menos verdade: a maioria dos blogues são versões modernizadas do que dantes se escrevia nas paredes das casas de banho públicas” aconselho-a a não criar um blog com permissão de comentários ou a faze-lo anonimamente.
9. Conclui MFM com mais uma boa dose de nostalgia saudosista e romântica da “
cultura do meu tempo”. Apenas não refere o que eu gostaria de saber: inclui-se MFM na élite que, coitada, parece perder o seu poder intelectual de impor “
Homero, Mozart ou Eça” ou, além de se entreter a ver o concurso televisivo “
Um Contra Todos” e a teclar no teclado dos livros de Platão que encimam a sua secretária, prossegue a “
hidden political agenda” que referi?
Caracteriza-a ou não a "covardia dos intelectuais" de que fala?