O "Retorno das Desigualdades" ma non troppo...
Fátima Bonifácio, em artigo do "Público" chorrilha um conjunto de inverdades, semi-dislates e algumas verdades sobre uma real crise do sistema escolar português. Proponho-me desconstruir algumas das suas teses:
1. O título aponta para um eventual “retorno das desigualdades”: a verdade é que as desigualdades a jusante e a montante do sistema escolar nunca foram embora para, agora ou recentemente, poderem regressar. Os sociólogos da educação (com destaque para o emérito Pierre Bourdieu) já o trataram até à exaustão. Nos tempos actuais poder-se-á dizer (embora não apresente aqui dados para o sustentar) que a desigualdade é de pendor neo-liberal e mascarada de uma retórica de mudança supostamente niveladora das desigualdades (de que nos fala tão bem Thomas Popkewitz);
2. Não é verdade que “inovação pedagógica e transformação social conseguiram produzir o fracasso educativo que está hoje à vista de todos” mas, outrossim, a incapacidade em transpô-las para o terreno escolar. Aqui esta bonifaciana personagem monta a sua própria armadilha. Ela não se refere, especificamente, ao “mal” de tal “inovação” e “transformação”. Apenas as adjectiva, implicitamente, de “más” ou “causadoras directas do fracasso educativo” no seu conjunto. Numa só cajadada condena a produção científica pedagógica e, julgo, da sociologia. Os campos que, justamente, mais têm denunciado as desigualdades do sistema escolar. Por outro lado, quererá dizer que se não fossem a produção destas duas áreas não haveria “fracasso educativo”? Seguramente que não…
3. As afirmações “De repente, a escola confrontou-se com um universo de alunos em cujas casas nunca existiram livros e cujos pais não sabem falar português” e “conduz à percepção da escola antes de mais como um instrumento de integração e ascensão social, em lugar de ser prioritariamente encarada como um meio de desenvolvimento intelectual” são, em si verdadeiras. A primeira é suportada por “hard data” (ver dados do Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural) e a segunda também. Estabelecer uma relação entre as duas é que já não se revela pertinente. A “percepção” de que fala na segunda afirmação é muito anterior à “massificação” que “ocorre” na segunda. Aconselho-lhe a leitura de Sérgio Grácio, designadamente sobre os antigos liceus e outros escritos.
4. Profere: “O grau académico é visto em primeiro lugar como uma promoção social, e só muito secundariamente, e raramente, como o atestado de uma qualificação intelectual. Por isso a maioria dos estudantes não acha que seja preciso estudar, acha que basta passar.” No que tem razão. O canudo tem, mesmo que cada vez mais desvalorizado no acesso a um posto ocupacional equivalente no mercado de trabalho, vale per si como factor de prestígio para quem o possui;
5. Também é pertinente nas posições sobre perda de autoridade do professor, de uma indisciplina dali resultante, de laxismo, da responsabilidade do professor neste mas, mete a pata na poça quando as torna, todas elas, “consequência” da “implementação de um conceito de «comunidade educativa» em que os alunos são convidados a participar, em pé de igualdade, na vida escolar”. Como pode a senhora queixar-se de uma escola produtora de desigualdades, logo, anti-democrática por definição para, logo a seguir denunciar, condenar e atribuir muitos dos males à implementação de um mecanismo democrático na mesma? A senhora confunde planos: “participar em pé de igualdade”, por parte dos alunos, não implica a perda de autoridade do professor. É um nexo de causalidade pobre e linear. É pobre e falsamente desculpabilizador. Quer dizer que se transpôs para a escola aquilo que já é (na teoria ou na prática…) comum a muitas outras esferas da vida pública ou privada e característico das sociedades democráticas. E, de uma só cajadada de novo, coloca em causa a filosofia subjacente ao ideário e edifício legislativo da autonomia e gestão das escolas. Dificilmente isto poderá ser adjectivado de “democracia radical”. Achará que os resultados da Escola da Ponte são, no seu conjunto, apócrifos ou resultantes de uma conspiração entre adultos e crianças para propagar uma falsa realidade? Para quê? Saudosista dos tempos da velha senhora, Fátima Bonifácio quer duas democracias: uma para si, plena de direitos, onde tem o direito de liberdade de expressão, de participar livremente na génese e vida das instituições e outra democracia para os outros. Outra onde todos devem ter consciência das suas limitações e plena de deveres…;
6. A relação que Fátima Bonifácio estabelece entre um “relativismo cultural agressivo”, a perda de autoridade do professor e uma cultura juvenil que “privilegia o prazer e o lazer em detrimento do esforço e do estudo, e a leitura é considerada uma prática obsoleta quando se pode procurar tudo na Internet” não é despicienda. Mas também não é exclusiva da escola. Sendo polémico, saberá a senhora que os defeitos e aspectos perniciosos do relativismo cultural já estão, há não muito, a ser combatidos por um “interculturalismo crítico” tão profícuo embora pouco mais que emergente? Não tem que saber. Pelo que lhe reconheço alguma legitimidade nesta posição;
7. Seguidamente enuncia somente aquilo que lhe convém nas “modernas teorias educativas” para sustentar a sua posição: “o professor tem de ser um camarada e a escola um lugar lúdico; deve propiciar a expansão da livre criatividade do aluno e o desenvolvimento da sua preciosa personalidade; não deve ensinar nada cuja utilidade não seja evidente; deve convocar a permanente participação do aluno; só deve ensinar coisas que se «compreendam» e nada que se decore; deve estimular a capacidade crítica dos alunos; não deve maçá-los com matérias áridas ou demasiado complexas; não deve sobrecarregá-los com trabalhos de casa que lhes roubam o tempo para as brincadeiras tão indispensáveis à sua felicidade.” O que resultaria, para o aluno, uma espécie de “filhos de Rousseau” na visão de M. Filomena Mónica. A argumentação de Bonifácio parece-me o trabalho do causídico de acusação que destaca apenas o que lhe fortifica a sua posição e omite tudo o resto, por mais relevante que pareça. A verdade é que Bonifácio não deve circular por muitas escolas. Se o fizesse descobriria que, muito boas ou muito más, aquelas “modernas teorias” não são esmagadoramente aplicadas, ou são-no retoricamente: assaz no discurso e muitíssimo menos no campo escolar. Pelo que dificilmente poderão ser responsabilizadas. Dou-lhe, no entanto, razão aos disparatados preceitos legais que facilitam a não reprovação de alunos a que faz alusão no seu artigo;
8. Em todo o seu discurso ressalta a ideia de que os males da escola vêm de fora dela, dos teóricos da educação, portadores de maléficas teorias pedagógicas, que só minam e sabotam o trabalho do professor. Ora e os próprios professores? Serão eles, nesta panóplia de desgraças, “filhos de Rousseau”, inatamente excelentes pedagogos, pobres coitados agredidos indefesos e sem qualquer responsabilidade neste teatro de crise? E o palco da formação dos mesmos? É inócuo a este cenário fatalista? Tudo indica que sim. Colega docente afirmou, no outro dia: “Nunca me chocou que os alunos copiassem. Penso que é um direito que têm. Mais ou menos como o direito de um preso de fugir da cadeia, ou o direito a mentir, quando se está a ser julgado”. Fátima Bonifácio esquece-se de que os professores são humanos e, como tal, passíveis de errar. Que a linha de fronteira entre ser “professor camarada” e “professor com autoridade” é extremamente difícil de traçar mas exequível. Que, como outros humanos, experimentam dificuldade em transpor as “modernas teorias” do ideário para o campo de trabalho, no caso, a sala de aula, e que muitas vezes o fazem numa ânsia precipitada e irreflectida. Que também eles são propagadores e não somente vítimas da “cultura difusa na sociedade valoriza a sensibilidade e a intuição espontâneas em detrimento de uma racionalidade crítica informada”. Efectivamante, alguns dos argumentos de Fátima Bonifácio são quase tão antigos como a imagem que acompanha este post. ("Industrial Worker", da org. "Industrial Unionism", P.O. Box 2129 Spokane Washington, 1906[?])
14 Comments:
Excelente 'post', Paulo. Bravo! Acho que é a melhor e mais bem fundamentada resposta que alguma vez li aos argumentos da "escola" Bonifácio-Mónica-Barreto.
Obrigada. :)
DK
Uma sugestão: por que é que não envia este seu texto para o jornal Público? A probabilidade de o publicarem não será talvez muito alta, mas é importante que alguém faça frente - com argumentos de peso, bem fundamentados - à capelinha de "vacas sagradas" que por lá escrevem dislates sobre a educação com demasiada frequência...
DK
Uma verdadeira dissecação, PLopes.
Daniela. Os seus comentários exprimem a sua gentileza. Pensava que era dos poucos que tinha alguma aversão a estas teorias catastróficas tipo Bonifácio-Filomena Mónica. Ainda bem que não... Com "Barreto" quer dizer "António Barreto"? Tive oportunidade de privar com o irmão dele nas minhas andanças à procura de livros antigos (ele de psiquiatria e eu de escolares antigos e afins) e nem ele é apologista das teorias da cunhada (ou ex-cunhada...).
Tenho muitos post's feitos e vou colocando-os à medida que o tempo passa. Um deles é sobre qualquer coisa como "A 11.ª Tarefa de Hércules" e é sobre as minhas aventuras e desventuras de tentar publicar algo no diário "Público"... ;-(
"O que é mais dificil? Enfiar um camelo num buraco da uma agulha ou entrar um rico nos reinos dos céus?". Nenhuma! É publicar um artigo no "Público" não tendo nome na praça...
Grande abraço!
(Ah! E o post ultrapassa largamente as dimensões máximas deles. Veja em http://www.publico.pt/contactos/#4)
Depois de ler o post, e antes de ler os comentários da DK, tive o mesmo pensamento no que respeita a uma eventual tentativa de publicação do artigo no Público. Penso que seria aconselhável sintetizar um pouco algumas ideias para tornar o artigo menos extenso. Mas valeria a pena tentar. O artigo é muito bom e mereceria indiscutivelmente ser publicado. Temos autor.
PJ
Nada mais a dizer. Também já tinha abordado esta triste bonifacice no professorices, mas como curta nota crítica. Quanto ao Público, também anotei no meu blogue os meus insucessos. Nada lá passa contra os opinadores de estimação do director.
O artigo pode não ter grande "fundamento", mas achoq ue deve ser visto de outra perspectiva: a autora aponta algumas realidades com que se depara diariamente. Podemos não concordar com a análise que faz, mas deveremos ignorar a realidade que retrata?
E descubro eu, pelo "halloscan" do "professorices" que este portão que me barra o acesso à publicação do que quer que seja no "Público" (tirando anúncios pagos que deve ser a única coisa...) é comum a várias pessoas! O Provedor (Joaquim Furtado) já se zangou comigo por e-mail nos vários que trocamos...
E, Hugo, o que diz "it's a good point" (já agora... não consegui descortinar, a propósito do "Público", onde é que estava o tal link na parte superior esquerda do blog "barnabé". E "fui" lá procurar... ;-[)
Excelente. ;)
Anónimo envia-me crítica a este post por e-mail. Diz que Maria Filomena Mónica, Fátima Bonifácio e António Barreto é que são "neo-liberais". Logo terei um erro crasso no conteúdo do post... afinal já não sei o que é "neo-libralismo"... expliquem-me, sff... ;-(
Fica o link directo:
http://www.petitiononline.com/zemanel/petition.html
Grato, Hugo. Fui lá. Tem piada. Deixei a minha impressão digital. Mas agora é que sou completamente irradiado do "Público" ;-[
Um Bom Natal, Paulo.
Dizem-me, por e-mail, que este post contém "ataques pessoais" (despropositados, infere-se) à autora do artigo dissecado. É capaz de ter razão o autor. Fiz uma versão menor sem os mesmos.
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