(Des)História da Educação em Portugal (II)
O inspector escolar Santos era um homem de velha cepa, moralista, óculos de massa grossa escura e atarracado. Ex-professor primário formado nos cânones do Estado Novo, era, relativamente àquele período, semi-critico dos tempos mas não das vontades.
Bebia o seu copito, com peso e medida, nas tascas dos arrabaldes das escolas C+S e Secundárias que visitava. Com aviso prévio às segundas e não às primeiras. Propagava que “agora não se aprende nada” e, para o provar, gostava de citar os versos do seu velho livro da quarta classe:
Tu queres subir ao alto
Ao alto queres subir
Mas quem ao mais alto sobe
Ao mais baixo vem cair.
e
Quem teve a grande desgraça
De não aprender a ler,
Só sabe o que se passa
No lugar onde estiver.
Naquele dia prestava-se a visitar um estabelecimento na terra plana do coração do Alentejo. O sol pesava-lhe nas pernas. A canícula no no rosto. O velho “supercinco” que conduzia prudentemente então não estava melhor que o dono. É recebido com o respeito de outros tempos na escola pelo segurança e pela senhora presidente do Conselho Executivo. Tem carte blanche para ir assistir a qualquer aula. Breve conversa com aquela apura que colega do Magistério nos tempos antigos lecciona História na sala 12. Àquela hora. Que mais podia querer? Velhas amizades e novas mentes em acção. E quem sabe um copito depois. Na sala 12 as paredes humedecidas e descascadas contrastam com o mobiliário novo e o computador desligado.
«- D. Marilia! Há quanto tempo! Veja lá...
- Inspector Santos? Quem houvera de dizer? Esteja à sua vontade...»
Curta conversa que o tempo não ajuda esclarece que se fala do grande incêndio de Roma. Apaixonado da História, Santos deduz o resto: da alegada responsabilidade do imperador Nero na deflagração do inferno e da loucura do imperador, reza a lenda ou a realidade. Por D. Marília, o inspector Santos faz o que quiser, e pode perguntar o que quiser, e a quem quiser. O homem gosta do ritual de passear por entre as carteiras e de escolher aleatoriamente um pimpolho a quem interrogar. A turba emudece, receosa.
«- Como te chamas?
- Porfírio, senhor inspectador
- Então... quem foi o grande responsável pelo incêndio de Roma?»
Porfírio endurece. Não esperava por esta. Baixa a cabeça e desata em pranto:
«Não fui eu! Juro que não fui eu!»
No que é corroborado pelo colega da secretária ao lado:
«Ah! Ele estava comigo nesse dia! O dia todo! Não podia ter sido ele! Ele tem um libini.»
Pela familiaridade do libini, Porfírio é positivamente apoiado por vários moçoilos da turma. Santos estupefaz-se. Como pode? Aproxima-se de D. Marília, lívido.
«- Então?? Viu isto? É admissível tal resposta?
- Mas olhe que o Profírio...
- O Porfírio? Eu sabia o que dizia ao Porfírio mas não a quero desautorizar! Então? Vá lá!
- Olhe... o Porfírio tem professora de apoio, tem dificuldades. Mas não é mentiroso e se ele diz que não foi ele é porque não foi ele!»
Afirma, altiva e defensora, a D. Marília. Santos irrompe pela sala fora e invade o gabinete da senhora presidente do Conselho Executivo. Perde a educação antiga num ápice. Narra, furioso, o episódio. Pede um inquérito à professora e aos “processos”. A senhora presidente quase nem tem tempo de reagir. Mas promete agir:
«Sr. Inspector. Se depender de mim toda essa história desse incêndio será esclarecida. Vou ordenar já um inquérito e pedir o apoio da Junta e da GNR para juntos apurarmos responsabilidades e pode ficar descansado que os responsáveis pelo incêndio serão castigados. Mas olhe que conheço os pais do Porfírio e tenho muita fé no rapaz...»
«Poderá ser possível?» Santos fica granítico antes de abandonar o gabinete emudecido. O que fazer? «É uma coisa organizada?». Na tasca onde tinha começado a tarde, o copito tinha travado conhecimento com um vereador da Câmara que tinha assegurado o acesso ao gabinete do Sr. Presidente da edilidade, assim o inspector o desejasse. Agora parecia uma boa ideia. O homem até era conterrâneo geracional do inspector e certamente não desdenharia tomar uma atitude firme face às desgraças pedagógicas. Pois então, se depressa o pensou mais depressa o fez. A funcionária zeloza na antecâmara do gabinete do Sr. edil não travou o andamento do Inspector Santos. Porventura teria havido algum telefonema a avisar? Pois deveria. Dois copos de lícor de Singeverga poisados na pomposa secretária do presidente pareciam prova-lo. E provaram-no. Provaram o aviso prévio e provaram os pequenos receptáculos.
«Homem?! – clama o edil numa facies esclarecida – Já estou a par de tudo! E sabemos como resolver o problema a seu contento! O senhor faz um relatório circunsizado a dizer tudo e...»
Pronto, cogita Santos, a coisa foi finalmente dignificada. Foi preciso alguém de cepa semelhante a si para colocar as coisas numa perspectiva adequada.
«... a Câmara envia-o para o Governo Cívil e para o Ministério, paga os prejuízos do incêndio e não se fala mais disso!”, exulta o senhor presidente.
Santos engasga-se no segundo copo do lícor de terras de Santo Tirso. Sai, cabisbaixo, do gabinete do líder local e, sem destino especificado, andraja pela praça da localidade. Sentado defronte da imponente estátua de Vasco da Gama, larga ciciadamente, um comentário conclusivo:
«Ah, Camões! Ah! Camões! Quanta ingnorância no meu país...»
8 Comments:
Delicioso 'post'. :)
Fez-me lembrar alguns episódios caricatos - e verídicos, penso eu... - que um amigo advogado me contou. Exercendo a sua profissão numa pequena cidade peiférica, ele tem muitos clientes emigrantes, esp. em França e na Venezuela, que falam um português bastante "idiossincrático" (digamos assim ;) ). Duas tiradas memoráveis desses clientes:
- envolvido num processo de divórcio litigioso, mas fazendo questão de sublinhar a sua rectidão de carácter, diz o cliente ao meu amigo: "Ó Sou'tor, eu sou um homem honesto - gosto de tudo pelo 'recto'!";
- outro, em conflito com um construtor civil, queria à força 'embriagar' uma obra...
Enfim, o "Portugal profundo" no seu melhor! ;o)))))
DK
Hilarante... Diana (?). É, de facto, o Portugal profundo no seu melhor. Eu sei que a coisa é polémica mas são estas pessoas, não pondo em causa a sua honestidade e humildade, que (me) afirmam, amiúde, que "os jovens de hoje não sabem nada" (cf. post de 2112/03). A história é, na essência, uma anedota popular. Os pormenores narrativos, as descrições fisionómicas e psicológicas foram imaginadas por mim inspiradas no meu velhos instrutor de condução: um homem "recto" e que nunca se "imbriagaba". ;-D. Tem um blog? Pelo google não consegui enxergar...
;-))))))))))))))))))))). Andas espirituoso meu rapaz. Mas eu conhecia a anedota. Contaste-a cá nas terras do Demo há alguns meses. Estas está mais rica em... coisas, detalhes, etc.
Nelson
Daniela. Não, não tenho um blogue, mas sou habitué e quase-sócia do Professorices, do Fio de Ariana, do Que Universidade? & Cia... ;o)))
DK
A DK é sócia honorária do Fio de Ariana.
Sorte dela... também quero ser! Onde me inscrevo?
Não é por inscrição, é por mérito. Tens de esperar por um feriado nacional e, se mereceres, quem sabe...
Hummm... 25 de Dezembro! Cá estarei a lembrar-lhe de novo! :-D
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