segunda-feira, janeiro 19, 2004

Questões de interpretação no ad eternum da crise...

Vitor Constâncio vem a terreiro dizer que o congelamento dos vencimentos dos funcionários públicos não deverá ocorrer no próximo ano. O que disse ele, verdadeiramente? Por exemplo, disse que concordava que este ano tal tivesse ocorrido? Na verdade não disse nada de novo ou significativo. Se o nosso manipulador-mor (Durão Barroso) fosse confrontado com esta sentença, diria, com a maior naturalidade do mundo "É esse o nosso desejo, de facto. Pensamos que tal não irá ocorrer para o próximo ano". Dito desse modo, não se compromete com nada. Se para o ano tal façanha se repetir, basta justificar, novamente, com a penúria orçamental para não concretizar o desejo sincero e assumido. Tal é transferível, também, para Vitor Constâncio.
As recentes afirmações do mais alto magistrado da nação quer a propósito da verborreia jornalistica do caso Casa Pia, quer do recente repto para um pacto de regime visando uma estabilidade orçamental não causaram senão um assentimento por parte de todos os grupos parlamentares (exceptuando-se uma vozes isoladas que afirmaram que poderia ter ido mais longe). Quando confrontados com as afirmações do presidente, um e outro grupo parlamentar afirmam, face a "aprofundamentos" dos jornalistas, que "não foi bem isso que o presidente disse/não foi essa a nossa interpretação"...

Tudo cai em saco roto. Tudo perde a eficácia. Estamos num país de afirmações, "sérias" bombásticas mas inconsequentes. Na verdade, por entre as propostas da maioria parlamentar ou do governo impera o que T. Popkewitz denomina a "retórica da mudança": têm-se repetido, seguindo algumas regras fundamentais do marketing, manifestações mediáticas de anúncio de medidas para isto e para aquilo de cuja concretização não vemos o menor vislumbre. E não me venham dizer que a culpa é do tipico português, preguiçoso e avesso à mudança. Isso foi chão que já deu uvas...

Ele foi o Programa Pólis, ele é a revolução na Administração Pública, ele é a sociedade de informação, ele é o financiamento da ciência mais recentemente, etc., etc. Quem acredita nestas coisas? Mas o impacto de algumas das medidas parece/é sentido. Aqui parece haver uma tendência: as medidas "negativas mas necessárias e não populistas" como o congelamento de vencimentos na administração pública e as vagas na mesma são sentidas no dia-a-dia e nos números do desemprego. E assim se vai enganando o Zé Povinho com promessas, vagas e abstractas de um futuro melhor.

Dou a mão à palmatória, no meu caso pessoal, numa medida positiva em que, efectivamente, senti impacto: o abono de família. De facto aumentou para o meu novel filho. De resto, tudo me passa ao lado. E se os nossos líderes são confrontados com isso, dirão: "É uma revolução silenciosa..." ou "é um investimento a longo prazo dos quais os frutos irão desenvolver e estabilizar-se nas gerações futuras". Eu quero "barulho" e "frutos" para já. Eu quero qualidade de vida hoje e não a promessa de a ter, vagamente, amanhã. Se não for eu, pelo menos para o meu filho...