sábado, janeiro 17, 2004

Assumpção de qualidades: o paradoxo da humildade. Uma entrevista fictícia

Todos temos qualidades e defeitos. A maioria mais os segundos do que os primeiros e alguns, poucos, o oposto. Eu não pertenço a esta última categoria. Temo-las porque são visíveis, porque agimos em conformidade com elas. A este nível, o "ser e parecer" é mais fiável do que o "dizer". Mas é sobre este último que eu quero falar hoje: sobre as qualidades que dizemos ter. Com especial ênfase numa delas: a humildade.

Eu poderei dizer, e ser acreditado, "Eu sou uma pessoa moral", isto é, sou uma pessoa que tem (alguns) princípios, que se rege por eles e que tenta não os violar a não ser em circunstâncias muito excepcionais. Por arrastamento poderei dizer "Eu tenho uma consciência" no mesmo sentido: moral. Ergo, terei uma consciência que me incomoda quando violo, deliberada ou não, as regras que regem a minha moralidade.

Eu posso dizer "Eu sou honesto". Os que me ouvem e que me conhecem acreditam, não têm nenhuma prova do contrário mas parece-lhes que a alocução é mais provável do que o oposto, isto é, de que eu serei desonesto. O mesmo não será dizer de "Eu nunca fui desonesto" já que todos cometemos, em maior ou menor grau, uns pecadilhos aqui e ali. Também não lhes custará a acreditar muito que "Eu sou uma pessoa fiável" embora aqui o grau de crença possa variar de indivíduo para indivíduo de acordo com o conhecimento que têm da minha pessoa.

Quem acredita em mim, todavia, se eu disser "Eu sou humilde"? Esta poderá ser a única qualidade em que a sua assumpção nada prova sobre a sua posse como dá fortes indicações precisamente do oposto. Então, o humilde será aquele que nunca o afirmará? E se for mesmo humilde, isto é, não só "parece como é" e o disser uma vez só perde parte ou grande parte dela ou toda? E se ouvirmos a alocução de uma pessoa da qual não temos nenhuma dúvida de que é humilde, de que nunca conhecemos ninguém tão humilde como ela, de que a até conhecemos, na sua plenitude, o conceito de humildade por causa dela e ela disser: "Sem dúvida nenhuma de que eu sou humilde!". Zás!! Perdeu toda a humildade conquistada por uma vida de virtudes humildes por uma só frase? Então é-se mais humilde quando não se assume a própria humildade? E quando até se renega-a? Por exemplo: se a mesmissíma pessoa super-humilde por actos nos dissesse, textualmente: "Eu não sou humilde" estaria a ser hipócrita?

Crentes ou não, "Católicos apostólicos romanos" ou não, praticantes ou não praticantes da mesma confissão, cristãos em geral... se descobrissem, através e uns papiros quaisquer de Qumran (os célebres "manuscritos do mar morto") ou outros documentos sobre os quais a comunidade científica não seria céptica no tocante à sua veracidade viessem porventura, agora, provar que Jesus Cristo tinha dito: "Bem-aventurados os que são humildes como eu"? Caía o Carmo e a Trindade?

Vamos imaginar um extracto de uma entrevista ao indivíduo tido como dos mais humildes que se já viram:
"Entrevistador: Boa tarde. As minhas fontes consideram que o senhor/a é de uma humildade sem comparação...
Entrevistado: exageram, sem dúvida...
Entrevistador: considera-se uma pessoa humilde?
Entrevistado: ... [ri-se]
Entrevistador:então?
Entrevistado: não sei bem como responder a essa pergunta...
Entrevistador: é uma pergunta muito simples: considera-se ou não uma pessoa humilde?
Entrevistado: olhe, nunca se é bom juíz em causa própria, não é?
Entrevistado: está a fugir à pergunta...
Entrevistado: não estou nada... é que...
Entrevistador: deixe-me reformular: considera-se uma pessoa não humilde de todo?
Entrevistado: Eu acho que não...
Entrevistador: nesse caso, é uma pessoa humilde?
Entrevistado: pois... talvês... não sei...
Entrevistador: eu reformulo novamente: vive humildemente?
Entrevistado: Ah, sim, penso que sim...
Entrevistador: tem ambições desmesuradas?
Entrevistado: Ah, não! Pobre de mim...
Entrevistador: compreende e aceita as pessoas como elas são?
Entrevistado: sim, sim, tento...
Entrevistador: perdoa, normalmente, as pessoas pelos seus erros (quando não ultrapassam certos limites)?
Entrevistado: sim, sem dúvida, faço por isso...
(...)
Entrevistador: tudo o que me disse revela uma humildade irrepreensível! Você é uma pessoa humilde!
Entrevistado: se você o diz...
Entrevistador: Porquê? Você não acha?
Entrevistado: eu acho que..., ...
Entrevistador: é humilde!
Entrevistado: hum... pois... não sei... tento ser...
Entrevistador: Pois... tenta e é, não é? Recorde-me um episódio da sua vida em que, em maior ou menor grau, você tenha demonstrado uma evidente falta de humildade...
Entrevistado: hum... não posso dizer que alguma vez tal tenha acontecido...
Entrevistador: Precisamente! Porque você é uma pessoa humilde! Vá! Admita!
Entrevistado: ó homem?! Você....
Entrevistador: olhe... se você não é humilde eu não estou aqui a fazer nada! Estou a perder o meu precioso tempo! As minhas fontes asseguraram-me que você era de uma humildade nunca vista! Agora se elas estavam erradas e você está a mentir...
Entrevistado: não! Eu não estou a mentir...
Entrevistador: as minhas fontes estavam correctas, portanto?
Entrevistado: sim, sim, acho que sim...
Entrevistador: Sim?! Então você admite!! Você é uma pessoa humilde!! Vá! Vá! Por favor! Admita! Admita!
Entrevistado: sim, porra! Eu sou uma pessoa humilde!! Eu sou uma pessoa humilde!!
Entrevistador: ...
Entrevistado: ...
Entrevistador: que raio de pessoa humilde é você que brada aos quatro ventos que é humilde?? Chiça que não tenho sorte nenhuma com estas entrevistas..."

Pois...