segunda-feira, janeiro 12, 2004

Hierarquias, responsabilidades e tratamento pessoal

Alguém no seu emprego ou na sua escola, sobretudo na administração pública, tem colegas que lhe estão hierarquicamente acima e com quem têm de lidar frequentemente? Eu tenho. E vou reparando na questão do tratamento que as pessoas preferem, ergo, como gostam as pessoas de ser tratadas mas, sobretudo, por quem. Na minha actual escola, são muitas as pessoas que estão sujeitas a hierarquias. São mais de categoria profissional do que de habilitações académicas. Eu explico: estou numa escola superior de educação pública. Lá existem três categorias entre o pessoal docente: de cima para baixo: os professores-coordenadores, os professores-ajuntos e os assistentes. Desculpem - existe uma quarta categoria: os equiparados a assistente. Para a primeira é preciso ter o grau de Doutor ou Mestre, para a segunda, Mestre (podendo, também, ser Doutor) e para a terceira, o grau de licenciado (podendo ser, também, Doutor ou Mestre). Para a "quarta", o mais provável é ser-se licenciado-mestrando mas, mais uma vez, pode-se ser Doutor ou Mestre.

O grau académico torna-se irrelevante para a questão da distribuição de serviço, para a remuneração e para o tratamento: se se é equiparado a assistente Doutor, continua-se a ser um reles equiparado a assistente. Por outro lado, se se é professor-coordenador mestre é-se objecto de todo o respeito e consideração... a antiguidade, aliada à categoria profissional, impera.

Para quem está a ler isto, pode-se ter qualquer categoria com qualquer grau académico... não é bem assim. Não se pode ser professor-coordenador ou professor-adjunto sendo só licenciado excepto em... Portugal. Num país civilizado, o que poderia definir estes estratos seriam as habilitações académicas: o mais graduado seria, em princípio o mais experiente, o mais competente do ponto de vista científico, o mais aglutinador de responsabilidades de maior peso. Mas não é assim. No Ensino Superior Politécnico verifica-se, em geral, que quanto mais alto se está na hierarquia menor é a quantidade de trabalho e maior será o tempo que se gasta em tarefas improdutivas excepto se se estiver em funções de gestão. O Ensino Superior Politécnico agrega o que se pode chamar de mão-de-obra-barata abundante: o grosso do trabalho científico e pedagógico é feito pelo exército de assistentes e equiparados a assistente. Simultaneamente estes são os primeiros a descartar no caso de crise. E, enquanto lá estão são os que ganham menos, os que menos direitos têm e os que mais contas têm que prestar. Eles fazem tudo aquilo que a lei que rege estas escolas diz que não devem fazer: leccionam aulas teóricas, orientam estágios, elaboram programas, fazem investigação, etc, etc. Lá estarão os seus "superiores hierárquicos para tirarem proveito disso: titulam os programas, alegadamente são eles, afinal que "orientam" os estagiários e encabeçam os projectos de investigação.

E os "professores" terão um horário entre 6 e 8 horas podendo ir a 12. Os assistentes não costumam ter muito mais de 12 enquanto a versão escrava deles, os equiparados a assistentes vão por vezes acima das 17, 18 ou 20, 21, 22 ou mais.

O que fazem então estes "não-assistentes"? O mesmo que os assistentes ou equiparados a tal mas em muito menor dimensão e, facto que os caracteriza exclusivamente, têm lugar no "circo das vaidades" - perdão - no "Conselho Científico", espécie de lugar de exercicio de oratória vaidosa, retórica inconsequente e sitio onde se acendem e apagam fogachos e chamas de uniões e desuniões conforme as motivações do momento ou alianças conforme os interesses interesseiros. Lugar de formalismo supostamente informal, os Conselhos Científicos são arenas de uma prática democrática desvirtuada onde só interessa brilhar para o palco e demonstrar falsas sapiências e apócrifas humildades.

E como se trata esta turba? Na minha escola impera um falso informalismo. A velha frase "trata-me por tu" não é dita, não é, sequer esboçada, entre os "sábios anciãos" da casa. Entre assistentes, e a sua versão mais escravizada, os equiparados a tal, oiço esta frase com maior ou menor sinceridade mas oiço-a. Eu própria a digo a todos eles e aos "sábios anciãos" também. Estes tratam-se entre si por tu ou você mas fazem questão de não ser tratados como tal por aqueles que lhe estão, "hierarquicamente" abaixo. Podia lá ser outra coisa??!! E quando alguém me trata por "Dr." e eu corrijo: "Paulo, se faz favor" a correcção cai em saco roto. Porquê? Porque quem diz tal coisa seria expectável que o interlocutor também alegasse "trate-me por tu também" ou "trate-me pelo meu nome também". Mas não. Os "sábios anciãos" não querem tal coisa: o respeito diferenciado é uma coisa muito bonita e eles gostam muito...

E até arranjam uma estatrégia para não se pensar que o respeito é variável conforme o grau académico (é a categoria!): quem tiver grau de mestre deverá constar, em qualquer documento escrito como "Doutor". Assim: por extenso. Não sendo Doutor (isto é, com o doutoramento feito) insurgi-me, sem sucesso, face aquela regra ser usada para a minha pessoa. Mas vou insistir...

Poderão achar que estou a ser um bocado hipócrita. Confesso desde já: peço aos meus alunos que me tratem pelo meu nome mas não por tu. E dispenso o Dr.. Dispenso sim. Mas os "sábios anciãos" não.

Noblesse oblige! Helas!