A "legitimidade" para criticar: uma questão de grau...
Toda a gente sabe que o português é, sobretudo em conversas de café, muito crítico. Crítico mas inconsequente. Corporiza a vitima ideal para a incompetência/inoperância dos serviços públicos e privados já que não reclama e, quando o faz, não o faz da forma mais adequada. Daí que aqueles atributos abundem nestes serviços em Portugal. É uma tese consensual.
O português é, também, egoísta nas suas criticas. Não me esqueço de ver nos telejornais os utentes dos transportes públicos a queixarem-se dos efeitos que determinada greve dos comboios ou dos autocarros, apesar de "legitima", perde esta sua legitimidade quando lhes atrapalha a vida, a ida para o emprego (como se os portugueses fossem pródigos na pontualidade...). Recordo-me de ver um senhor, funcionário dos serviços de identificação de Lisboa (em greves periódicas por motivos justissímos) que, comparando a "sua" greve com a dos comboios da Linha de Cascais, se queixou da paragem destes transportes pelo transtorno que lhe causavam no regresso a casa. Com os portugueses é assim: só as greves dos outros é que, "legitimas" ou não, são incómodas e causadoras de transtornos. As próprias nunca: são mais que justas e raramente inoportunas.
Pelas greves ou não, a maledicência nacional pelo outro é um hábito muito enraízado. O português escolhe, selectivamente, quem deve criticar pelo critério de não exercer, ou não exercer abundantemente, o "pecado" que aponta no outro. Passo a explicar: se eu, como de facto acontece, raramente passo dos 120/130 km/hora nas auto-estradas, considero-me legitimado para vilipendiar aqueles que andam a 150 ou mais km/hora nas mesmas estradas. São umas bestas ao volante! Eu não! Posso, então, fazer esta critica. Se conduzisse a velocidades maiores, é como se a minha psique me impedisse de alardear esta queixa. E se o fizesse, os laivos de moralidade que ainda tenho, não evitariam a falta de persuasão na alocução da mesma. Se outra pessoa nunca ou raramente mentiu na declaração de rendimentos do IRS, está "aprovada" para escarnecer aqueles que driblam os fisco, espécies de estupores que enriquecem à nossa custa!
Pessoalmente, acho, por exemplo, que quem se absteve nas últimas eleições legislativas ou autárquicas, não tem legitimidade para se queixar do governo do país ou do municipio. Mas outros poden não pensar assim.
Há uns dias, enquanto esperava que o meu filho estivesse pronto para saír do infantário, observei um avô que abraçava o neto bébé com um carinho inconfundível. Instantaneamente generalizei-o (o avô) como sendo um senhor doce e afável, educado e cortês. O mesmo sexagenário pouco depois de eu já ter o meu bébé já comigo, sai do estacionamento para arrancar sem sequer mirar os carros que, já em movimento, estavam na estrada para onde o velhote queria adentrar. Sendo eu o condutor atrás dele a manobra irreflectida do velho obrigou-me a travar a fundo. À minha apitadela, o avô "doce e afável, educado e cortês", respondeu-me com insultos invocando não sei que legitimidade para a irreflectida manobra que tinha acabado de fazer. Pois sim!
Outro aspecto é a dimensão do pecado: uma espécie de cunhada que tenho também se queixa dos "alarves" que "voam" nas estradas do país, dos sinais que não respeitam e dos "piscas" que não fazem. Quando lhe digo que não faz qualquer sinal de luzes na entrada e dentro das rotundas, ela mantém um silêncio comprometedor ou minimiza o facto: não se compara a faltas muito mais graves que se cometem ao código de estrada. Logo, a sua falta é um mero pecadilho, inocente e inofensivo. Provavelmente, também eu considerarei tal atributo ao conduzir a 130 km/hora numa estrada que não permite mais do que 120. Para os que circulam nas auto-estradas ou vias equiparadas a não mais que 90/100 km/hora (também os há) eu serei, quando os ultrapasso, um desses "loucos do volante".
Na verdade, é tudo uma questão de grau...
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