quarta-feira, janeiro 05, 2005

Piercings e Dilemas Sindicais: Universidades Medievais e Universidades Actuais

INTROITO 1:Aqui há uns tempos, numa aula de História da Educação, abordava eu a emergência das universidades no período medieval. Para tal tinha eu seleccionado um texto que, com transformações, tratava de rituais iniciáticos da recepção aos alunos recém-chegados àquelas instituições na Idade Média. Visava eu, entre outros, que os alunos se apercebessem que, no essencial, o modo como se organizavam, formal ou informalmente, quer através das suas associações próprias quer através dos rituais de iniciação, não diferia muito, na essência, daquilo que sucede agora. O texto também destacava a estrutura altamente piramidal, a extrema autoridade (e abuso) que tinham alguns dos seus (carismáticos) professores e a pouca abertura que se atribuía à liberdade, ao pensamento divergente e criativo dos alunos pela via do método rigoroso e disciplinador dos lentes, embora se saiba que foi com as universidades, por via do “Lectio/Quaestiones/Disputatio” (especialmente o último) que se amaciou algum do “magister dixit”das anteriores escolas medievais (as "Escolas Catedrais", por exemplo, percursoras das universidades). Com a matéria recuperava, também, num espaço próprio para o efeito, um debate sobre a utilidade/pertinência das praxes actuais. A conclusão, aqui e ali com várias nuances enriquecedoras, era aquela que eu antecipava: nada das actuais praxes é, na essência, grande novidade. Eis que um aluno, daqueles mais esclarecidos, me diz “professor? Na essência, o resto também não mudou muito…”. E explicou que a Universidade actual continua com a sua estrutura piramidal, um satus quo difícil de alterar, um conjunto de professores “cadernáticos” que tudo dominam e nada admitem que fuja ao seu controle and so on… curiosa crítica para um miúdo de 19 anos com piercings na língua e nas orelhas…

INTROITO 2: Já há alguns anos que sou sindicalizado. No sindicato onde estou tenho, desde há vários anos, feito algum do meu percurso desde mero associado, passando por delegado sindical até à actual função num dos órgãos da estrutura. O sindicato, na sua actividade reivindicativa como que “escolhe” os seus inimigos: ou é o Ministério no seu todo, ou a/o titular da tutela ou algum dos seus secretários de Estado (estes todos vão e vêm) ou as suas políticas em abstracto. Mas tem um alvo. Todavia, em surdina, os agentes sindicais sabem que, em muitos casos, o “inimigo” está entre nós. É entre a classe docente especialmente a dirigente, que está nos órgãos de gestão, nos Conselhos Directivos, nos Conselhos Científicos, nas chefias dos Departamentos, por via das suas opções político-científicas que os maiores atropelos à legalidade se cometem. E se é fácil criticar um presidente do C.C.I.S.P. ou C.R.U.P. por o serem mais na qualidade do respectivo órgão do que da universidade ou politécnico a que pertencem já não o é tão fácil criticar quando se trata de docentes que o são apenas na qualidade de docentes da instituição à qual pertencem. Honrosas excepções são publicitadas quando a ilegalidade é mais que evidente e, sobretudo, se o sindicato não tiver uma grande quantidade de sócios na instituição de onde pertence o docente/órgão criticado. O carácter aberto e explicito do “ataque” também é tão mais fácil se a ilegalidade, irregularidade ou inerente ousadia não for um potencial problema causador de maior precariedade para os seus associados nessa instituição, o que se compreende. É, também, mais fácil acusar um presidente do Instituto Politécnico ou o “magnifico” (??) reitor de uma universidade do que um presidente de um Conselho Directivo; acusar, com publicidade, um conjunto abstracto de “Conselhos Científicos” (por não admitirem no seu seio mestres e doutores assistentes) do que um daqueles órgão em particular. A este último são endereçadas missivas sem grande alarido. E, finalmente, é mais fácil acusar quem quer que seja quando os associados já tiverem sido todos despedidos: nada há a perder. Todavia tal não desmerece a minha conclusão: sendo uma questão delicada para os sindicatos, os seus maiores “inimigos”, quaisquer que sejam, estão nas próprias escolas. Veja-se este caso: por mais que os sindicatos se esforcem por fazer alterar os Estatutos do Ensino Superior que permitem os concursos com imagem digitalizada ("C.C.I.D."), "com fotografia" ou "com ADN", serão sempre as escolas que, amoralmente, abusam das falhas da Lei para abrir tais ínvios concursos…

E porque tem razão o aluno piercingzado do intróito 1 e porque se justifica o temor dos sindicatos do intróito 2?

Porque as universidades (e os politécnicos) não são, na essência, muito diferentes das instituições de ensino medievais:
- mantém-se uma estrutura piramidal que interfere, lesivamente, nas opções de investigação onde as chefias dos projectos são constantemente as mesmas, com Directores que roubam ideias dos seus “subordinados”, obrigando-os a perseguir filões temáticos que só vão enriquecer os ulteriores artigos científicos encimados pelos primeiros, etc.;
- onde há uma maléfica aliança entre as opções de investigação e as promoções na categoria docente, etc.;
- onde os “subordinados” precários, por muito que apregoem a sua independência, liberdade de pensamento e de volição, depressa se acomodam à autoridade incontestável do “chefe” em prol da sua sobrevivência (quão censurável é isto?);
- onde os presidentes dos Circos de Vaidades, perdão, dos Conselhos Científicos põem e dispõem de quem é e quando é promovido, da qualidade dos pareceres dos docentes precários, definem e legitimam quem são os protegidos que devem ser contemplados com “Bolsas do PRODEP”. Lugar onde os compadres se reúnem e, entre alianças e re-alianças que se fazem e desfazem, vão se protegendo e votando favoravelmente as suas auto-agregações e nomeações definitivas, etc.;
- onde os Conselhos Directivos conjuram, congeminam e conspiram sobre qual o assistente ao qual se pode colocar o labéu de há ou não “cabimento orçamental” para ir ou não para a rua sem direito a subsidio de desemprego, em função de critérios subjectivos tais como “amizade”, “quantidade e qualidade de favores que fizeram no passado ao órgão”, “especificidade das suas posições políticas em prol ou não do órgão”, etc., e nunca por mérito, quem tem direito a um “melhor gabinete” ou quem vai partilha-lo com outros 6 professores qual lata de sardinhas, etc., etc.
- onde os directores de departamento (influenciando o C.D.) escolhem, a seu bel prazer, quem tem direito a uma carga horária, um número de disciplinas ou uma configuração de horário mais bem-composta, quem pode e deve ser ou não integrado neste ou naquele projecto de investigação, beneficiar do seu financiamento e, por via disso, mais tarde poder ser ou não despedido por via de um "currículum vitae" melhor ou pior, quem é assistente que pode ser promovido a equiparado a professor-adjunto ou o que pode ser o alvo do concurso com imagem digitalizada que vai abrir, quem é o docente que pode ou não ser sujeito a um processo disciplinar por muito ou pouco que tenha feito por isso, etc., etc. ;
- enfim, nas actuais universidades (não muito diferentemente das medievais: apenas mais complexas) e ensino superior em geral, reina a discriminação, o nepotismo, a corrupçãozinha barata e fácil, os compadrios diários e os amiguismos frequentes, o privilégio de alguns e a segregação de outros, a arbitrariedade nas admissões, nas promoções, nas opções político-científicas em benefício de uns poucos e prejuízo de uns muitos;

Desculpem a minha brutalidade ao dizer que o Ensino Superior Público em Portugal é, em muitas acepções e salvo honrosas excepções, uma boa merd*! E eu lá vou adiar a minha partida para Suécia mais uma vez...

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

És capaz de ter mais sorte. Não é nos países nórdicos que se registam os menores índices de corrupção? Li em qualquer lado.
Nelson

janeiro 05, 2005 2:33 da tarde  
Blogger JVC said...

Grande post, deliciou-me, principalmente porque, por razões tácticas de eficácia junto de um publico a conquistar, tendo a moderar as minhas críticas. Mas, quando as vejo preto no branco, com merdas e tudo, alivio por interposto blogger.

janeiro 05, 2005 5:52 da tarde  
Blogger Miguel Pinto said...

As organizações escolares, independentemente dos níveis de ensino, padecem dos mesmos males. As disfuncionalidades não são passageiras, são estruturais!

janeiro 05, 2005 9:24 da tarde  
Blogger Chris Kimsey said...

Obrigado pelas gentis palavras, JVC. Dão-me sempre muito alento.

E, Miguel, é claro que tem razão. Mas diga-me uma coisa: as organizações não são, sobretudo, pessoas? Então, mutatis mutandis...

janeiro 05, 2005 10:38 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O que é que tem a Suécia afinal?? :|
David

fevereiro 09, 2005 10:11 da manhã  

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