sexta-feira, janeiro 07, 2005

Dupont e Dupond no Ensino Superior ou o silêncio ensurdecedor dos paradoxos convenientemente emudecidos

Excelente post (de 18 de Setembro de 2004) de Luís Aguiar-Conraria agora pertinentemente republicado no Meta-blog do Ensino Superior leva-me a escreve este post quase de um só jorro.

INTROITO 1: Há largos meses assisti, no edifício novo da Assembleia da República, à apresentação pública da “Lei de Bases da Educação” do Partido Socialista. Por altura do debate fui uma das três pessoas que colocaram questões concretas, diligentemente anotadas por Ana Benavente. Na resposta às mesmas, a deputada respondeu à primeira e à terceira, esquecendo-se, convenientemente, da segunda: a minha. E qual era a minha questão? Porque é que é admissível que, no ensino superior, não seja obrigatória a posse de formação pedagógica aos docentes mesmo, pasme-se, àqueles que leccionam em cursos de formação de professores?

INTROITO 2: De entre os leitores docentes ou ex-docentes do ensino superior deste blog e do Meta-blog do Ensino Superior, considero que haja dois tipos: o/a Dupont & o/a Dupond.

Dupont lecciona ou já leccionou numa universidade ou politécnico, público ou privado, há/por vários anos. Possui uma licenciatura e/ou um mestrado e/ou um doutoramento numa área científica para o qual tem, obviamente, formação certificada, isto é, um ou mais graus académicos reconhecido(s) e comprovável(is) pelo(s) respectivo(s) diploma(s). Nunca frequentou qualquer curso de formação pedagógica (a não ser, na melhor das hipóteses, um daqueles rápidos e/ou intensivos). Ingressou na docência há muitos ou poucos anos e considera que foi aprendendo a “arte de ensinar” com a experiência ao longo do tempo. Dupont não acha iminentemente necessária a posse de formação pedagógica certificada para ser “um/a bom/boa professor/a” mas não gosta muito de o admitir publica ou frequentemente. Todavia, para Dupont é repugnante a ideia de ser professor de uma determinada área sem a posse, devidamente comprovada, de formação científica nessa área. Acha, então Dupont, que é requisito indispensável para se ser docente a posse dos conteúdos a ensinar (“o que ensinar?”) mas já não é tão necessário o conhecimento da “arte” (“como ensinar?”) do ensino. Se todavia, perguntarmos a Dupont se considera que um professor deve ter, a todo o momento, preocupações pedagógicas na sua actividade, Dupont dará a reposta politicamente correcta: “Evidentemente! E eu tenho sempre essa preocupação!”. A resposta não escamoteia a concepção que Dupont receia admitir: a formação científica é fundamental para a docência mas no tocante à formação pedagógica, das duas uma: ou aparece como “geração espontânea” ou adquire-se, natural e inexoravelmente, com a tentativa e erro e por outras vias, com o exercício da profissão docente. Se Dupont tivesse, porventura, a missão de seleccionar um docente para trabalhar no seu departamento ou na sua escola, acharia fundamental a formação científica e minimizaria a ausência de formação pedagógica nos candidatos, ou valorizaria somente a primeira. Enfim, Dupont acha que é fundamental a posse dos conhecimentos e quanto à “arte” de ensina-los, “a ver vamos”, “todos têm as suas dificuldades inicias”, “a experiência ensinará…”...

Dupond é igual em tudo a Dupont. Só difere em duas coisas: em primeiro lugar a sua formação científica inicial contemplava um curso superior “via de ensino” e/ou fez estágio pedagógico ou profissionalizante no ou pós curso. Mas sente-se, muitas vezes legitimamente, defraudado/a com as cadeiras pedagógicas que teve no curso ou pós-curso achando que o que aprendeu nada ou pouco ajudou a lidar com os alunos na situação de aula. Dupond, em segundo lugar, e ao contrário de Dupont, sabe que a “Pedagogia” ou “Ciências da Educação”, por muito que esteja desiludido/a com a formação pedagógica que teve, sabe - dizia eu - que aquelas “áreas” são, também, em si, formação científica, que podem (e devem) ser fundamentais para:
- a aquisição de comportamentos saudáveis do professor na sala de aula (de que nos revela alguns Luís Aguiar-Conraria);
- a aplicação de métodos, técnicas e estratégias de ensino;
- a concretização de lógicas de organização e desenvolvimento curricular na gestão/transmissão dos conteúdos;
- a operacionalização de regras próprias da docimologia (a ciência da avaliação ou dos exames) nomeadamente, por exemplo, nos cuidados na elaboração dos enunciados dos testes;
- que se registam especificidades da/na relação pedagógica professor-aluno

para não falar de outras milhentas coisas que podendo, não se aprendem pela experiência com o mero exercício da profissão docente senão de uma forma pouco sistemática, demorada, custosa e com consequências nos discentes … Faz lá ideia Dupont disto... ele acha que "fazer o melhor que pode" partindo do vazio, da ignorância é suficiente...

Dupont não faz muito ideia do que é isto tudo: acha que se vai aprendendo com o tempo e até se esquece que a “saudável” (?) “aprendizagem por tentativa e erro” faz dos alunos uma espécie de “cobaias” do professor, isto é, faz dos alunos receptáculos, não inócuos e não sem consequência, da aprendizagem do professor até se “aprimorar” e/ou até pensar que finalmente “aprendeu definitivamente a ensinar” e “nada mais tem a aprender de substancial”. Dupont é, enfim, a maior parte da classe docente do Ensino Superior Politécnico e a maioria esmagadora do Ensino Superior Universitário.

Finalmente, e pela lógica, nem Dupont nem Dupond são formados em cursos de formação de professores ou educadores de infância pelas escolas superiores de educação ou pelas universidades.

O que têm em comum o INTROITO 1 e o Dupont do INTROITO 2?

O paradoxo convenientemente silenciado pelos dois sistemas de ensino superior, pelos seus decisores quer a nível central quer a nível dos órgãos científicos e de gestão das próprias escolas: a posse de formação pedagógica certificada, fundamental para o acesso e progressão na carreira nos níveis de ensino pré-superiores, é absolutamente secundarizada ou totalmente desprezada no ensino superior universitário e politécnico, público e privado.

E foi preciso Luís Aguiar-Conraria ir para o estrangeiro e experimentar a técnica de micro-ensino da autóscopia (de que nem ele próprio sabe o nome [!] mesmo tendo-a experimentado com satisfação) para se aperceber que sistemas de ensino superior mais avançados do que o nosso dão à formação pedagógica o devido valor. E é por tal que Ana Benavente, ela própria das “Ciências da Educação”, se “esqueceu”, por conveniência, de responder à minha questão não obstante não lhe faltar tempo para tal na supra-citada conferência.

O assunto é incómodo. E ensurdecedoramente silenciado. O caso assume particular gravidade quando temos muitos Dupont’s no ensino superior politécnico e universitário a formar professores e educadores de infância. O paradoxo aqui é mais evidente: o docente não tem formação pedagógica mas está “apto” a transmiti-la, certificadamente, aos discentes que a terão comprovada no fim do seu curso. É de bradar aos céus.
Algum Dupont ou Dupond aceitaria tal lógica para a formação científica? Isto é: pode-se, por exemplo, ser um bom professor de Química apenas pela mera experiência da docência da Química e sem nunca ter frequentado um curso certificado nessa área? "Não, claro que não", asseguram os gémeos residindo aqui a hipocrisia cimentada no sistema.

Tenho encontrado muitos Dupont’s na minha vida docente. Aqueles que, sem o saber, não se importam de exprimir, publica e nesciamente, a sua ignorância dizem-me:

- “Porque preciso de formação pedagógica? Eu sou professor de Biologia!
(professor-coordenador com agregação da área das Ciências da Natureza de uma Escola Superior de Educação);

- “Não tenho [formação pedagógica] nem preciso. Eu só dou aulas ao curso de animação sóciocultural!
(professor-coordenador com agregação da área de Antropologia de uma Escola Superior de Educação);

- “Para mim não é pertinente [a formação pedagógica]. O que preciso de saber já sei há anos
(professor-adjunto de nomeação definitiva da área de História de uma Escola Superior de Educação);

- “Oh… isso agora [a formação pedagógica]… agente aprende com o tempo
(professor-associado e iminente investigador da área de Física de uma universidade pública coimbrã);

- “Formação pedagógica? Para dar Química Orgânica? Deves estar a brincar!
(professor-auxiliar ou associado [? ou equivalência a...] da área de Química de uma universidade privada portuense);

- “A pedagogia é para crianças!
(professor-associado e iminente investigador da área de Sociologia do I.S.C.T.E.).

A última resposta sugere-me uma explicação para esta concepção: não é necessária a formação pedagógica ao docente se ele tiver, como alunos, jovens (ou jovens-adultos) que, pela natureza do curso que estão a estudar não irão, previsivelmente, lidar com crianças num eventual futuro profissional. No caso da Sociologia, e nem é por isso, a lógica é extremamente falível, para dizer pouco…

Os Dupont’s que lerem este texto irão, ensimesmados, esboçar um leve sorriso comprometido. Não o comentarão (e será um post pouco ou nada comentado por eles). Sabem que o conteúdo do texto tem lógica, alguns até concordaram com o post do Luís Aguiar-Conraria, mas, plenamente detentores das fragilidades e concepções que denuncio, silenciar-se-ão. Sabem que o seu silêncio apenas reproduz e cimenta este execrável paradoxo. É pena. Muitos deles serão, provavelmente, bons professores Dupont’s, sabendo-o ou não…

12 Comments:

Blogger JVC said...

Excelente post, mas eu gostaria de salientar que o professor universitário tem que ser Dupontd! A ênfase na preparação pedagógica, que tanto tenho defendido, não deve servir para desculpar a falta de preocupações científicos. Nem Dupont nem Dupond, obrigatoriamente ambos.

janeiro 06, 2005 1:40 da tarde  
Blogger MJMatos said...

Magistral, caro PLopes. Por vezes, � necess�rio ter a coragem de dizer que o rei vai n�

janeiro 06, 2005 3:14 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Well said! Os posts do PL têm uma dimensão cada vez mais épica. Vou de assombro em assombro... ;o)))
DK

janeiro 06, 2005 3:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Mais uma vez um excelente e provocador post. Num destes dias ainda irás deparar com uma cabeça de cavalo na cama ou um peixe embrulhado num jornal, sinais que tens a cabeça a prémio pela máfia.

PJ

janeiro 06, 2005 3:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ah, PJ, essa é boa! Já me tinha ocorrido, mas não quis assustar o Paulo... ;o))))))
DK

janeiro 06, 2005 4:03 da tarde  
Blogger Miguel Pinto said...

Pois é, Paulo. A coragem não é atributo científico! Estou a tornar-me repetitivo: parabéns. ;o)

janeiro 07, 2005 12:17 da manhã  
Blogger Luis Moutinho said...

Falta a classe dos que têm as qualificações científicas que lhe deram o acesso à profissão mas que não desdenhariam fazer formação pedagógica... eu estou neste grupo.
ps: Ainda bem que não trabalho no Porto nem dou Química Orgânica!!!

janeiro 07, 2005 10:49 da tarde  
Blogger saltapocinhas said...

Venho "meter-me" num meio que não conheço, mas o senso comum também faz falta nestes debates, não é só a opinião dos especialistas...
Não há professores do 1.º ciclo nem educadores de infância com habilitações suficientes. Todos têm habilitação própria para isso. Se tu ou os teus colegas do superior quisessem ir dar aulas ao 1.º ciclo não podiam. No entanto, podem dar aulas aos outros ciclos todos. E nem precisavam de ser professores!
TODOS os professores deveriam estudar pedagogia.
Nem o meu filho nem a minha filha, em toda a vida de estudantes, reclamaram da incompetência dos professores a não ser quando chegaram à Universidade. Isto deverá querer dizer alguma coisa. O meu filho teve um professor que se limitava a ler nas aulas. Ele (e outros)deixaram de ir a essa aula pois sabiam ler desde a primária! E depois há ainda os professores convidados, com uns lençóis de curriculo mas que naõ sebem falar português. Admite-se um professor numa Universidade portuguesa, pago pelo estado português que fale para os alunos em castelhano?? E que o continue a fazer durante anos sem se preocupar em aprender a língua do país onde vive? Realmente o ensino superior só é superior no nome!

janeiro 08, 2005 3:22 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Concordo plenamente com o conteúdo da sua entrada. Aconselho-o a ler a entrada de 31 dezembro passado do Abnóxio (http://abnoxio.blogs.sapo.pt/arquivo/427697.html) que "fala de "Uma certa escroqueria universitária...". Em medicina onde estudei é a mesma realidade. As "cátedras" são ensinadas ao arrepio de qualquer preparação pedagógica. Aliás, um comentário nessa entrada diz: "Se a plena profissionalização universitária fosse obrigatória, fechavam as nossas faculdades de medicina". Triste.
A. Tavares

janeiro 08, 2005 10:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

De resto, imaginem um certo paralelismo com esta situação: não deve o enfermeiro ter só formação na área de enfermagem mas também no lidar com o paciente (do ponto de vista psicológico, sociológico, etc.). Por isso tenho que concordar com o teor da entrada. E vejo mesmo a utilidade deste tipo de formação pelo que observo nas enfermeiras do hospital.
A. Tavares

janeiro 09, 2005 2:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O desprezo a que a formação pedagógica é votada no ensino superior tem a ver com o facto de não ser valorizada a competência pedagógica face ao curriculum científico. Interessa mais, do ponto de vista da carreira, a publicação de um artigo ou uma comunicação numa conferência do que bons apontamentos de curso, disponibilidade para apoio aos alunos, avaliações com correcção rigorosa dos testes, e por aí adiante. Quando, para o curriculum profissional do professor, fôr devidamente ponderada a componente pedagógica, a dicotomia Dupondiana desaparecerá.
X

janeiro 10, 2005 11:23 da tarde  
Blogger Chris Kimsey said...

"X"??

março 01, 2005 11:24 da manhã  

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