sexta-feira, dezembro 19, 2003

Um passeio na Avenida dos Banhos da Póvoa

No outro dia vieram-me à mente, em estado de reverie, dois acontecimentos da infância que aconteceram quase de seguida e que me assaltaram o pensamento quase todo o dia. Estarei numa fase nostálgica agora que me aproximo dos 40?
Teria eu uns 5-6 anos e passeava pelo Passeio Alegre na Póvoa de Varzim com a minha progenitora quando fomos travados na lenta passeata por um daqueles casais cujas conversas sociais me entediavam. A agravar, a circunstância de ter que dar um beijo a uma velhota que adornava o seu rosto com várias camadas de cremes para disfarçar a crueza dos anos. Incomodáva-me o sabor que o contacto dos meus lábios nas maçâs do rosto das sexagenárias me deixava. Tolerava, estoicamente, o acto em prol da harmonia social vigente.

Esse casal, dizia eu, fazia-se acompanhar por um senhor muito alto, muito idoso e, sobretudo, com um aspecto pálido e cadavérico. Minha progenitora não teve pejo em admirar-se por o senhor ainda estar vivo à frente do dito cujo, o que me estranhou algo. Mas o aspecto do nonagenário (soube-o prontamente) impressionava pela sua palidez e cara escavada pelos ossos da caveira. Falavam sobre a longevidade e a alimentação mais adequada para esta faixa etária. Eis que a minha progenitora, em ar triunfal, clama: "agora quanto menos comer mais vive!". No que foi corroborado pelo casal que dedezi ser aparentado com o nonagenário.

Fiquei aterrorizado olhando esbugalhado para o velhote. Eis a explicação para o seu ar cadavérico: a fome. Perpassaram-me, às volutas; mil imagens do pobre homem, numa voz rouca e aflita a pedir comida ao casal e estes a retorquirem, ufana e infantilmente "Vá! O pai sabe que não pode comer muito! Sabe que pode morrer de congestão. Vá! Porte-se bem!". Meu Deus! E isto porquê? Porque tinham prazer na sua companhia? Porque se divertiam a trocar-lhe as fraldas de incontinente e a alimentá-lo, de quando em quando, ao talher na boca? Não. Porque precisavem da reforma dele. Pois não é que o nonagenário vivia na casa do casal e tinha uma reforma de 87 contos por mês?! Na altura interpretava eu como sendo muito dinheiro e provavelmente seria.

Pouco depois aparece uma senhora acompanhada por um rapaz, presumivelmente filho e de calças de bocas de sino. Mais uma conversa entediante, cogitei eu. O rapaz tinha o cabelo cumprido, o nariz aquilino e as borbulhas despontavam, qual erupções adormecidas, no seu rosto. Era um adolescente. Achei-o feio.

Falaram de filhos. "Este é o seu mais velho?", inquire a senhora. "Não. O mais velho ficou em casa", retorque a minha progenitora. Pouco depois fala-se de bébés bonitos e como eles crescem. A minha progenitora, face à questão da senhora-mãe-do-adolescente-seboso pergunta como estão os meus irmãos. No que lhe é dito - e aqui é que a conversa me chamou à atenção - que a menina, a minha irmã mais nova, está muito bonita, que cresceu e está uma senhora. Que o irmão mais velho fez-se num homem e está muito jeitoso (e, pensava eu, "E eu?"). Que o outro irmão (que não eu: eramos quatro irmãos) também se pôs um rapaz bem parecido (e eu pensava: "E eu?"). Enfim, os três irmão ausentes tinham, pela biologia do desenvolvimento, se alindado e desenvolvido em homens e mulheres bem parecidos. Eu parecia ter sido excluído daquele concurso de beleza. Fiquei incomodado. Eis que a senhora se volta para mim e diz: "e então este é que é o...." - pensei: chegou a minha hora de elogio - "... é o segundo mais velho?". A minha progenitora hesitou, olhou para mim e num rasgo que me depauperou a auto-estima, afirmou somente "É este, é". Pronto. Eis o meu certificado de fealdade passado, assinado e carimbado pelo selo maternal. Fiquei desolado.

Na hora da despedida, a minha progenitora olha para o adolescente-gedelhudo-seboso-e-de-acne-esfusiante e diz: "Este também se pôs bonito". No que foi secundada pela mãe dele. Graças a Deus! Mesmo no gongo!

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Sim, provavelmente por isso e

novembro 20, 2009 7:27 da manhã  

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