segunda-feira, novembro 22, 2004

Trabalhos de casa: bem ou mal? E necessário?

A notícia sobre a greve aos trabalhos de casa publicitada recentemente em alguns órgãos de comunicação social não parece, para já, ter despoletado qualquer posição defensiva por parte da classe docente através das respectivas associações. Talvez por a considerarem relativamente inofensiva. O mesmo já não sucede com a CONFAP, confederação de pais e encarregados de educação.

Quer se chamem "deveres", termo conhecido para aqueles que, como eu, ainda frequentaram a escola do Estado Novo, quer assumam a sigla actual e moderna de "T.P.C.", o assunto nunca foi, tirando uma ou outra discussão, palco de qualquer polémica. Os docentes universitários Eduardo Sá e Mário Cordeiro, classificam-nos de uma "penosidade", uma "tradição angustiante do dia-a-dia escolar" ("JN", 20/11/04) ou ainda "uma agressão aos direitos da criança" ("Expresso", 20/11/04) e ancoram esta denúncia a uma greve a estes trabalhos escolares a cumprir no Sábado. Também recentemente, Júlio Machado Vaz, em entrevista radiofónica, se pronunciou negativamente sobre estes trabalhos de casa. Tanto uns como outros argumentam que os trabalhos de casa roubariam tempo à brincadeira, ao descanso ou àquilo a que o mundo anglo-saxónico chama "quality time" entre pais e filhos.

Tradição implantada, as tarefas escolares que os professores marcam para que os estudantes façam em casa já se naturalizaram na rotina pedagógica.

Do ponto de vista do professor é vantajoso que os estudantes dediquem algum tempo, pós horário escolar, àquilo que por vezes se chama "consolidação das aprendizagens". Quer se trate de aplicar conhecimentos recentemente ministrados, quer se trate da mera prática de exercitação e treino, os trabalhos de casa têm um valor pedagógico indesmentível.

Do ponto de vista das crianças, a inculcação do hábito de fazer primeiro as obrigações e só depois a brincadeira nada tem de mal, ainda que que esta aspecto não seja, de modo algum, específico dos "TPC".

Do ponto de vista dos pais também assumem um papel relevante. Imersos em vidas profissionais atarefadas, os encarregados de educação encaram os trabalhos de casa (tal como nos manuais escolares), como uma forma de tomar conhecimento, ainda que fugaz, daquilo que se vai ensinando na escola dos seus educandos. E mesmo que sintam uma certa frustação por os trabalhos de casa não assumirem uma "configuração pedagógica" semelhante àquela que tinham no seu tempo de estudante, obrigar à sua execução, ajudar a fazer os "TPC" (ou mesmo faze-los), ou ainda, apenas dar uma breve olhada nos mesmos, cumpre uma certa função que descansa as consciências: a assunção de ter contribuído para o apoio escolar doméstico que os cânones sociais dos "pais educadores" aconselham. Simultaneamente cumprem uma função de controle: se é difícil ir às reuniões de pais ou falar com a professora deslocando-se à escola, os "TPC" restam quase como única via para estar, e sentir-se, envolvido minimamente na vida escolar dos educandos. A situação vai ainda mais longe: na verdade, muitos dos encarregados de educação que se queixam do excesso dos trabalhos de casa são os primeiros que, por um lado, vêem neles a possibilidade de serem "deixados em paz" enquanto os miúdos estão ocupados na sua execução e, por outro, são aqueles que mais usam o pretexto "fazer trabalho de casa" para transmitir às crianças um futuro negro profissional e socialmente, via insucesso escolar, se aquelas não lhes dedicarem tempo a faze-los. E a classe docente sabe disto tudo. E, qual cúmplice não declarada, cumpre a sua função marcando os famigerados "TPC".

Esta situação, por mais penosa que possa ser, encontra, então, explicação cabal para desaconselhar a extinção pura dos trabalhos de casa.

Todavia, a actual escola, sobretudo aquela que antecede o ensino superior, é caracterizada por extremos: entre muitos outros, excesso ou falta de alunos, excesso de disciplinas, falta de professores, horários e mochilas sobrecarregados, salas exíguas e demasiado quentes ou frias, falta de laboratórios e instalações desportivas e/ou parcamente equipados e muita, muita desmotivação da classe docente. Por tal, "Absurdos" ("JN", 20/11/04) não são os "TPC". Absurda é, em grande parte, a escola no modo com está organizada e rotinizada.

Com a profusão de tarefas que os professores marcam para casa obrigam a uma quantidade de tempo não despicienda. Considerando a hora a que os pais chegam a casa, os tempos e rotinas domésticas de preparação das refeições e o ritual dos pais para obrigarem os miúdos a faze-los, não raro, os "TPC" constituem um momento de stress angustiante quer para os progenitores quer para os estudantes. Frequentemente, são os pais, eles próprios, que cumprem as tarefas escolares domésticas chegando mesmo, em certos casos, a imitar a caligrafia dos educandos, numa tentativa de abreviar, para si próprios e para os miúdos, a penosidade da tarefa. Tudo isto não é alheio aos docentes, muitas vezes também eles próprios encarregados de educação sujeitos à mesma realidade.

A agravar a situação está a natureza dos próprios trabalhos de casa: cada vez mais feitos na lógica de um "currículo pronto-a-vestir", as tarefas domésticas escolares assumem-se, cada vez mais, como exercícios tirados dos livros adoptados (ou, frequentemente, fotocopiados dos mesmos) ou ainda meros prolongamentos da lógica imposta pelos manuais escolares. Porque os "TPC" são, na essência, como afirmam os professores universitários supracitados, "iguais aos que eram feitos há 40 anos" ("Público", 21/11/04). Pelo que não admiram as conclusões de Etta Kralovec e John Buell no estudo "O Fim dos Trabalhos de Casa. Como os Trabalhos de Casa Desestabiliza Familías, Sobrecarregam Crianças e Limitam a Aprendizagem" ("Público", 21/11/04). Impõe-se uma lógica que faça dos trabalhos de casa mais um trabalho de investigação do que uma mera repetição dos exercícios da sala de aula, que promovam uma inteligência prática e uma indagação científica mas ancorados em situações quotidianas naquilo a que há muitos anos se designava de "lição das coisas" em detrimento do "velho sistema de repetição árida" de que nos falam Eduardo Sá e Mário Cordeiro ("JN", 20/11/04). E que, na medida do possível, envolvam os pais pelo que se lhes impõe uma reconfiguração curricular que não pode, de modo, algum, simplesmente importar as tarefas dos trabalhos de casa dos livros escolares ou da imensa parafernália de para-manuais escolares que as editoras vêm, em catadupa, publicando desde há alguns anos para cá.

O problema não está, concluindo, no tempo que os trabalhos de casa ocupam mas na qualidade dos mesmos. E que, na senda de um bom senso pedagógico, se marquem com conta, peso e medida. A este nível, entre 30 minutos diários, começando pelo 1.º Ciclo e indo até aos 60 minutos diários no ensino secundário não nos parecem excessivos.

Ah, e já agora, deixem as crianças brincar ao fim-de-semana