quinta-feira, setembro 02, 2004

O problema, Dr. Mattoso, é que eles não são pedagogos, são pedabobos!

Escrevi este artigo há muito tempo. Mantem-se actualizado dado que as questões que aborda ainda se discutem, aqui e ali, no mundo da educação. Em artigo intitulado "A História no Ensino Básico" da autoria de José Mattoso ("Público", 13/4), o autor, insurge-se contra o documento de trabalho "Gestão Flexível dos Currículos no Ensino Básico" da autoria do Ministério da Educação. A sua critica sustenta-se, por um lado, na circunstância de algumas disciplinas (como por exemplo a História) poderem ver, na sua carga horária, contemplada uma redução no número de horas semanais, e, por outro, a possibilidade desta horas serem substituídas por "actividades sem nenhum conteúdo claro, sem nenhum programa, sem qualquer possibilidade de aferição objectiva de resultados". Atribui a responsabilidade desta eventual alteração a "decerto especialistas em pedagogia mas que não têm propriamente nenhum saber para transmitir". Conclui com uma breve síntese sobre as razões da utilidade do ensino da História no Ensino Básico (muito pertinente, a meu ver) e com uma espécie de atestado de menoridade intelectual ao Ministério da Educação por, supostamente não se aperceber daquelas razões e por, nos últimos quinze anos, fazer "da comemoração dos Descobrimentos um dos seus objectivos principais".

Algumas afirmações do artigo merecem, a meu ver, um resposta pronta.
1. Embora sendo também critico em relação a alguns aspectos do documento "Gestão Flexível dos Currículos no Ensino Básico", à génese da sua elaboração e às condições da sua aplicação, julgo que o Dr. Mattoso não leu o documento na sua integra, porventura, fez uma leitura diagonal ou, não o tendo lido de todo, sustentou-se nas questões que publicamente causaram mais controvérsia entre a classe docente. É que este documento não se confina a uma simples aritmética de quem fica com que número de horas semanais mas, outrossim, introduz alguns princípios que julgo louváveis do ponto de vista da filosofia e organização das escolas. Por outro lado, o que me diz do "Perfil de competências do(a) Aluno(a) à saída do ensino Básico"?

2. Alguns argumentos do Dr. Mattoso parecem denotar não "especialistas em pedagogia mas que não têm propriamente nenhum saber para transmitir" mas especialistas em qualquer coisa mas que não têm propriamente nenhum saber de como transmitir. É que, caso não saiba, é possível ensinar a História sem o fazer em tempos curriculares na forma de uma disciplina, nomeadamente noutros tempos lectivos quer se chamem "área de projecto", "estudo acompanhado" ou qualquer outra designação. A eventual diminuição do número de horas semanais da disciplina de História, tendo óbvias consequências no emprego de licenciados naquela área científica, não tem que ter, necessariamente, efeitos nefastos no ensino da História. A sua argumentação, sendo corporativa, enferma também aquilo a que os especialistas em Teoria Curricular chamam de "modelo de organização curricular baseado em disciplinas científicas" onde impera uma lógica de compartimentação disciplinar rígida e sem qualquer hipótese de índole interdisciplinar. Reconheço, no entanto, que esta lógica, bem como alguns princípios preconizados no documento em análise que justificam a diminuição do número da carga horária de algumas componentes disciplinares são de difícil aplicação dado o habitus (no sentido de P. Bourdieu) das escolas do ensino básico. É que, Dr. Mattoso, as resistências a alguns dos princípios do documento "Gestão Flexível dos Currículos no Ensino Básico" não se explicam somente por razões corporativas mas também pela circunstância de, durante muitos anos, termos um orgão central (Ministério da Educação) que não só estipulava à periferia (escolas) o que fazer mas, simultaneamente, como o fazer.

3. Refere no seu artigo: "Reduzir os tempos lectivos das disciplinas corresponde a renunciar a transmitir conhecimentos específicos e portanto renunciar à precisão, ao rigor, à objectividade". Esta é uma afirmação atenta, a meu ver, contra o profissionalismo da nossa classe docente bem como dos professores envolvidos na direcção das escolas. Enforma um atestado de menoridade intelectual dirigido a professores que, lutando contra variadíssimas adversidades, tentam fazer o melhor possível no desempenho da sua profissão. Quer V. Exª. dizer que, com a redução das horas de algumas disciplinas, os alunos "ficavam entregues à bicharada" nos tempos lectivos que as substituiriam? Quer V. Exª. dizer que, qualquer actividade que se realizasse fora do âmbito de uma disciplina específica seria, necessariamente uma perda de tempo, algo pedagogicamente inútil? Quer V. Exª. dizer que a nossa classe docente não tem competência científica e pedagógica para criar, em eventuais tempos lectivos interdisciplinares, actividades fecundas do ponto de vista da formação pessoal e social dos alunos?

4. Os eventuais males causados pelo documento da Gestão Flexível são, no seu artigo, atribuídos a não "especialistas em pedagogia mas que não têm propriamente nenhum saber para transmitir". Em primeiro lugar, Dr. Mattoso, saiba que a pedagogia é, também ela, um saber científico. Em segundo, que as mais actuais contribuições das Ciências da Educação não concebem uma formação pedagógica descontextualizada de uma formação científica e que, por consequência, não se compreende, do ponto de vista curricular, um processo de ensino-aprendizagem de algo (conteúdo científico) que não esteja baseada num método de o transmitir (pedagogia ou, mais precisamente, didáctica).

5. E, finalmente, Dr. Mattoso, o problema não são os pedagogos, são os pedabobos que, num processo de pedemagogização, enfermam as estruturas de decisão do universo da educação em Portugal. Por outras palavras, o mal não está na pedagogia mas na falta dela. Estes pedabobos, esforçam-se por criar, nas mentes mais desprevenidas, uma retórica pedagógica que transmita a ideia de que inovações estão a ser feitas na organização das estruturas educativas bem como dos efeitos benéficos que estas poderão ter (Cf. T. Popkewitz). A meu ver, e parafraseando-o, são "dotados de poder mas cuja arrogância cresce na razão indirecta da cultura". Tenho dito.